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       Não tinha noção do impacto que aquele encontro poderia me causar! Preparei-me antecipadamente, ansioso pelo prêmio que haviam me garantido. Eu só não imaginava que sairia dali com as mãos vazias. Antes de relatar o referido encontro, devo-lhes informar acontecimentos anteriores a isso – três meses antes.

     Eu era jovem naquele tempo e estava no segundo ano do ensino médio. Fazia parte de uma turma onde estudavam os mais populares da escola e eu era um deles. Nossos dias eram cheios de euforia e farra, consequência do status que tínhamos. Mas em um certo dia aconteceu algo que iniciou uma série de suspense na minha vida.

      Como de costume, fui ao armário na hora da saída guardar alguns materiais. O destino cuidou que eu estivesse sozinho naquele momento, sozinho para guardar um segredo. Aconteceu que quando abri meu armário, caiu dele um envelope azul com a seguinte mensagem inserida atrás dele: “De: Anônimo, Para: um armário aleatório”. Confuso, porém empolgado, abri o envelope imediatamente.

       A pessoa anônima declarou que estava trabalhando num experimento e convidou-me para fazer parte disso. O procedimento era muito simples: eu trocaria cartas com a pessoa anônima durante três meses e no final receberia um prêmio. Mas, para isso, eu teria que obedecer algumas regras: não poderia contar da troca de cartas para ninguém e nem tentar descobrir a identidade da pessoa anônima. Se eu violasse qualquer uma dessas regras, estaria automaticamente desclassificado do experimento e não ganharia o prêmio que, apesar de não ter sido especificado, me fora garantido que valia a pena ganhá-lo.

       Com um grande espírito adolescente dentro de mim, cheio de curiosidade e pronto para me arriscar numa aventura, decidi aceitar o convite para ver que fim teria, sem imaginar o que estaria envolvido naquilo. Para confirmar minha aceitação, eu teria que ir até a área onde ficavam dispostos prateleiras com os troféus da escola perto da portaria, pegar o pedaço retangular de papel verde que estava dentro do envelope e colocá-lo sob um troféu específico. Um pouco nervoso e tentando ser o mais discreto possível, o fiz. Meus olhos passeavam pelos arredores na inútil tentativa de detectar a pessoa anônima. Era certo que eu estava a ponto de infringir uma regra, mas a curiosidade era instintiva. De qualquer forma, não obtive sucesso. Apenas avistava alguns alunos que estavam tão preocupados aguardando seus pais que não me lançavam sequer um olhar de interesse.

      Após juntar-me ao grupo de amigos e pegar o ônibus de volta para casa, apresentei-me calado e pensativo. O ônibus estava cheio de alunos, seria o anônimo algum deles? Que tipo de experimento ele estava fazendo? E haveria mesmo um prêmio final, ou era só um joguinho besta de alguém que não tinha algo melhor para fazer? Bem, isso eu teria que descobrir com o tempo. No pior dos casos, após três meses.

       Dois dias depois recebi a segunda carta, veio num mesmo envelope azul. Mas o conteúdo agora era outro. A pessoa conseguiu introduzir um assunto que me deixou ansioso para escrever-lhe uma resposta e foi isso que fiz logo após terminar de lê-la. Comentei que concordava com o ponto de vista dela e o quanto também ficava indignado com aquela situação mencionada. Além de expressar meu ponto de vista, acrescentei algumas perguntas naturalmente curiosas no final, a fim de saber de onde surgiu a ideia daquele experimento e se eu podia saber alguns detalhes a mais.

       No dia seguinte coloquei minha carta sob o referido troféu e a partir daí esperei ansiosamente pela resposta em meu armário. Eu não sabia quando a resposta viria, então sempre que o abria torcia para que avistasse o envelope azul. E ele apareceu três dias depois.

       A pessoa continuou comentando sobre o assunto inicial e deu uma resposta não muito satisfatória às perguntas que havia feito: “Você não precisa saber de nada disso agora. Acredite, será melhor assim. Se eu satisfizer todas as suas dúvidas, o experimento perde a graça. Contenha sua curiosidade e aguarde os três meses para o prêmio final”. Aquilo apenas me fez ficar mais curioso, mas estava disposto a guardar segredo ir até o fim. Eu era bom em muitas coisas, não admitia derrota, e aquele experimento não seria uma exceção a esses aspectos.

      Quando fui enviar minha carta no dia seguinte, cometi uma besteira. Decidi ficar um tempo escondido lá por perto dos troféus, aguardando para ver quem era o anônimo. Era hora da saída e em algum momento a pessoa apareceria para pegar a carta. No entanto, 75 minutos se passaram e ninguém apareceu, exceto um de meus amigos que quase me descobriu.

       Fiquei me perguntando se a pessoa anônima era realmente um aluno. Que aluno ficaria até tão tarde na escola? Bem, parece que eu teria que investigar. Mas não pude iniciar qualquer investigação porque no dia seguinte, logo de manhã, estava lá, no meu armário, o envelope azul. Era a resposta mais rápida que já tinha recebido, e a mais curta também. Eu apenas fui repreendido por ter tentado descobrir a identidade do anônimo e fui avisado que teria mais uma chance. Somente mais uma e não poderia desperdiça-la. Arrependi-me profundamente do que fiz e partir daí nem sequer pensei em fazer algo do tipo.

       Desculpei-me com o anônimo e prosseguimos com a troca de cartas durante os meses combinados, sem mais problemas quanto à minha curiosidade. Quero dizer, não fui mais estúpido, porém ainda desejava muito descobrir a identidade do anônimo. Ele era muito mais interessante do que eu pensava. Não parecia apenas algum aluno desocupado que não tinha nada melhor para fazer. Conseguíamos ter ótimas conversas, conversas que eu não conseguia ter com nenhum dos meus amigos – elas tinham conteúdo. Com o tempo fui me apegando à pessoa anônima e desejava cada vez mais conhecê-la. Cheguei até a esquecer o prêmio final que me fora garantido, mas logo o meu espírito orgulhoso o trouxe à tona.

       Enfrentei alguns problemas durante aqueles meses quanto a manter em sigilo a troca de cartas. Eu era o líder do meu grupo de amigos e, por isso, recebia uma atenção especial. Então, se não estivesse por perto logo minha ausência era notada. Teve uma vez que demorei 4 dias para conseguir enviar minhas cartas, o anônimo até pensou que eu tivesse desistido. Mas o informei que eu estava disposto a ir até o fim - o que o deixou contente, disse.

      Foi muito difícil esperar os três meses, mas consegui. Após dois meses e 26 dias, recebi no meu armário aquele envelope azul, o penúltimo envelope, e meu coração batia um pouco mais forte, ansioso. Era uma espécie de carta de despedida, que não exigia resposta. Ela apenas continha orientações para a última etapa: um encontro.

     Um encontro!? Não podia acreditar que eu finalmente iria encontrar meu amigo anônimo! Eu precisava esperar apenas mais 4 dias. Na sexta-feira eu conheceria de uma vez por todas a pessoa mais interessante com que já tinha conversado, além de receber o meu prêmio de fidelidade, é claro.  Mas havia uma imposição: não podia me atrasar.

       No grande dia, depois que a campa tocou, esperei até o horário de 17h e me direcionei para o local especificado: o banco perto de uma goiabeira na praça da escola. Quando fui me aproximando, vi que uma pessoa já estava lá. Era uma garota, e isso apenas me deixou mais empolgado. Apressei meus passos e aos poucos fui reconhecendo a pessoa sentada ali: era a Lídia, uma das garotas do meu grupo de amigos. Lídia? Como aquela patricinha poderia ser o anônimo?

        - Lídia?

        - Carlos, você chegou!

        -Então você é o anônimo?

        - Não!

        -O que está fazendo aqui, então?

        -Lamento informar, mas você não era o único do experimento, querido. Tinha você, eu e mais três. O anônimo deixou esse bilhete aqui na árvore junto com o envelope azul, dizendo que os primeiros a chegarem devem esperar até a presença de todos citados aqui para abrir o envelope.

       Aquela notícia realmente me chocou. Então eu não era o único? De qualquer forma, eu não estava muito preocupado com isso, apenas queria que o restante do grupo chegasse logo para lermos a carta. Mas por que eles estavam demorando? Será que o anônimo não os informou que atraso estava fora de cogitação?

        Vinte minutos depois, o grupo estava finalmente todo ali e Lídia abriu o envelope ainda em suas mãos. Os outros ficaram ao seu redor para visualizar o que estava escrito. Eu decidi apenas escutar a mensagem enquanto Lídia pronunciava. O anônimo parabenizou a todos por terem chegado até o fim. Informou que a princípio 13 pessoas estavam no experimento, mas não conseguiram permanecer. Isso nos fez sentir-nos vitoriosos, os melhores – mas não por muito tempo.

     Após algumas linhas, o anônimo finalmente identificou-se, e essa parte da carta faço questão de relatar na íntegra:

“O anônimo que lhes causou tanta curiosidade e se relacionou com vocês durante esses três meses era eu, Maria Píah. Talvez não me conheçam por esse nome, então, deixem que eu os ajude: sou a “Bolor Negro”, aluna do 2°B. Sinto muito decepcioná-los com essa revelação. Vocês esperavam alguém que estivesse a altura de vocês, não é? Mas, por favor, não desistam agora, leiam até o final o que ainda tenho a dizer.”

      Aquela revelação realmente chocou, e os maiores racistas do grupo, Alison e Célia, retiraram-se imediatamente, decepcionados e com raiva, sem nem dar ouvidos ao pedido da moça. Lídia continuou a leitura e eu fiquei por perto, juntamente com o Mauro, escutando-a:

“A razão de eu ter ocupado vocês durante esses três meses era unicamente esta: conseguir atenção. Qualquer um que não estudasse no Mesquita diria que havia meios mais fáceis para isso, que uma troca de cartas anônimas era desnecessário. Mas vocês sabem muito bem que ninguém se atreveria a ser amigo da “Bolor Negro”, a única garota negra da escola. Porém, não sabendo minha identidade, dificilmente vocês me rejeitariam. Então, essa foi a única forma que encontrei de conseguir a atenção de alguns alunos. E deu certo, se não fosse pela infração às regras impostas, todas as 13 pessoas selecionadas manteriam contato comigo. Agradeço aos que chegaram até aqui pela atenção que me deram, mesmo que eu saiba que ela não viria de outra forma. Mas era muito importante pra mim, então eu ignorei o meio apelativo de como consegui formar alguns amigos. Vocês realmente me fizeram muito feliz nesses três meses. Nunca tinha recebido tantos elogios como recebi de vocês, e nunca antes ninguém tinha me dito o quanto estava contente em ser meu amigo. Eu realmente me sinto realizada. Mas vocês provavelmente devem estar muito decepcionados ou até mesmo com  raiva de mim. Por isso, peço desculpas. De qualquer forma, me sinto tranquila, pois não estarei mais viva para receber seus ataques. Recentemente, descobri estar com um câncer e tinha um prazo de vida, um limite: apenas três meses. E decidi que meus últimos dias teriam de ser diferentes – eu queria me sentir viva pelo menos nos últimos meses de vida. Então fiz o que fiz. Realmente deu certo, sinto-me realizada e grata pela felicidade que me proporcionaram. Vou embora feliz por isso, mas triste, também. Triste porque meus únicos amigos conseguem dar atenção e uma chance a um anônimo, mas não a uma pessoa negra. Adeus, a “Bolor Negro” não mais manchará essa escola”.

        Sim, inicialmente eu me entreguei ao experimento esperando ansiosamente pelo garantido prêmio, o prêmio por minha fidelidade a uma pessoa anônima. Mas em vez disso recebi outra coisa: uma lição. Sim, uma lição de vida de uma pessoa morta. É, saí dali com as mãos vazias, mas com a alma cheia. Cheia de arrependimentos, cheia de ódio por mim mesmo. E transbordando em lágrimas, extremamente triste por ter repúdio de chegar perto da minha melhor amiga e nunca ter sequer a olhado nos olhos.

Cartas Anônimas

Lóren Lorrelle
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