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       Ele via o mundo daquela maneira, não tinha um nexo certo, realmente. Queria ser algo e não conseguia, queria pedir desculpa para si mesmo mas as palavras não saiam, tudo ao seu redor era madeira, farpas e cheiro de papel queimado. A escrivaninha ligada, a máquina de escrever com pouca tinta. Jogado no chão, esperando as palavras emergirem de sua garganta. Ligou.

            -Alô?

            -Ahn… oi, liguei só pra dizer que…

            -Ah, oi, Gustavo, o que foi?

            -É… tava pensando em escrever sobre você.

            -Ata, tudo bem. É… eu tenho que ir, prometo que depois retorno, ok?

            -Tá…

            Ela não iria retornar.

        Era um idiota mesmo, com seus conflitos, com suas inconstâncias, um simples ser sensível que dilacerava os outros ao seu redor por não saber lidar consigo mesmo.

         O dia a dia era sempre igual, ir ao trabalho, ler processos, assinar, carimbar e mandar pra outro setor. A noite caia e ele ia pro café. Pedia um chocolate quente maltado pra tentar alegrar o dia. Tinha que parar, engordara 5kg nesses últimos meses. Mas que diferença fazia? Continuava seco em todos os sentidos. Chegava em casa, ligava o chuveiro, um banho quente sempre resolvia seus problemas. Quer dizer, costumava resolver. A barba mal feita, o cabelo castanho desgrenhado. Foi para a varanda. O velho hábito de fumar voltara. O vento frio e seco de setembro pareciam fagulhas em seu tronco nu. A fumaça do cigarro voltava constantemente para si e o fazia tossir. Entrou, sentou novamente na escrivaninha. “Para Olívi”; terminou a palavra “Olívia”. Se jogou no tapete de crochê, um dos poucos presentes de casa nova que ele guardara. Tentou fazer um balanço de sua vida: 28 anos, 1,85, solteiro, formado em Direito, sem família, sem amigos, sem namorada, sem Olívia, sem nada. Será que o que fizera era realmente algo imperdoável como julgava ser? Levantou-se, pegou a foto de uma menina de pele bronzeada, cabelos escuros e lisos e olhos amendoados. Ela sorria de um modo inocente enquanto mechas do cabelo cobriam seu rosto. Os olhos ficaram vermelhos. Droga. Abriu a geladeira, tomou a Coca Diet que tinha por lá. Deitou no sofá. Precisava alterar o curso dessa história. Já fazia muito tempo, 2 anos, precisava partir pra outra. Precisava se perdoar.

        Na manhã seguinte levantou cedo, tomou uma ducha de água fria, preparou uns ovos fritos com tomate, colocou um álbum qualquer de The Strokes pra tocar. Decidiu mudar. Apesar de ser semelhante às outras vezes que também tomou a mesma atitude, essa aparentou ter algo diferente, algo de genuíno. Foi ao centro da cidade, levou um caderninho, uma caneta, o celular e alguns trocados. Nos sábados as pessoas costumavam ir a essas feirinhas de comidas e outras coisas artesanais. Ele sentou ao lado da barraca de bolo podre. Era o preferido dela. Começou a escrever sobre quando comiam nesse lugar. Eram dias felizes. Ela costumava usar um vestido de flores e um óculos redondo. Tirava milhares de fotos dele comendo e comprava incensos para o futuro apê deles. Ele amava tudo aquilo, amava o sorriso de criança e os olhos castanhos escuro. A noite caiu e a tristeza voltou. Realmente, essa foi apenas mais uma tentativa frustrada de mudar alguma coisa.

        -Mas que droga, Gustavo! Por que você não fala nada?!

        -Des… desculpa… Olívia, por favor… A culpa é minha… me escuta…

        Olhou pra tatuagem no pulso “XIII/IV”. Tudo lembrava ela.

 

* * *

 

        -O que foi, Gustavo? Você tá bem? Por que me chamou aqui?

        -Ahn, tava escrevendo uma coisa… Sobre nós naquele dia na feirinha.

        -Nós?

        -É… você quer ouvir?

        Ela olha nos olhos dele. Vermelhos, baixos, grandes, verdes e quentes.

        -Tá bom.

        -Ai…

        -O que houve?

        -Não tinha certeza se você ouviria… Não tô preparado…

        -Tá bom, espero por você.

        -Acho que não foi uma boa ideia… Eu já vou, ok?

        -Não, Gustavo. Chega disso!

        -Desculpa. Eu não consigo…

        -Consegue sim! Já faz dois anos! Eu já te perdoei, minha família já te perdoou, por que você não se perdoa?

        -Droga, Olívia, não dá! - falou o homem soluçando.

        -Gustavo… por favor, senta aqui, vamos conversar…

        Ele abaixou a cabeça entre os braços. Ela se aproximou dele:

        -Por favor, me diz o que aconteceu.

        -Eu te amo, Olívia… é isso. Eu te amo mais do que eu consigo explicar. Esse é o grande problema.

        As pupilas dilatadas, os cílios grudados, uma pessoa acorrentada por trás de tudo isso.

        -Por favor… Me deixa ir… eu… eu não consigo ficar aqui.

        A moça solta o rapaz. Este pega apressado suas coisas e sai. Na mesa, apenas um papel amassado e manchado de café.

    

* * *

 

        Meses depois uma ligação:

        -Oi. Gustavo?

        -Oi… Sim.

        -A gente pode conversar?

        Silêncio.

        -Alô?

        -Oi, pode. Onde?

        -No mesmo lugar de sempre.

        -Ahn… tá bom.

    

* * *

    

        -Eu li.

        -O quê? - pergunta o homem magro de olhos fundos.

        -O papel que você tava segurando naquele dia.

        -Como você pegou? - pergunta o rapaz assustado.

        -Você saiu tão apressado que acabou esquecendo.

        Silêncio.

        -Tá bem bonito.

        -Obrig… Obrigado.

        Silêncio novamente.

        Ele levanta a cabeça e dá de encontro com os olhos amendoados:

        -Olívia… Por favor… Me perdoa…

        -Gustavo, eu já te perdoei, todos nós já te perdoamos… Por que você não deixa isso ir?

      -Eu não consigo… Não dá… Ver que seu irmão poderia ter uma vida totalmente diferente se não fosse por mim… Se não fosse por aquele idiota bêbado de 17 anos.

        Ela o olha com os mesmos olhos de 3 anos atrás: suaves, sinceros, aconchegantes e diz:

     -Eu amo você, Gustavo. Você sabe. Todos nós erramos… Eu confesso que odeio ter um irmão paraplégico, mas sei que se desse pra mudar as coisas, você mudaria; e é isso me deixa mais tranquila.

        Os olhos vermelhos, as mãos inquietas…

        -Não, Olívia… Eu não sei como você, ou melhor, como vocês conseguiram esquecer isso… Pra mim não dá… Eu prefiro viver longe de você - por mais que doa, por mais que isso arranque um pedaço de mim - a ver todos os dias todos da sua família se esforçando tanto pra que seu irmão tenha uma vida o mais normal possível. - diz o rapaz afastando as mãos que tocavam o cabelo enrolado desgrenhado.

        -Gustavo… por favor… - fala a menina procurando algum sentido nas expressões dele.

       -Você é tão doce e gentil, Olívia… Não sei como você quer amar alguém como eu. Eu te amo… Mais do que você imagina… Mas tenho que encarar isso sozinho. Me desculpa… Com certeza você vai achar alguém melhor - fala saindo enquanto enxuga as lágrimas.

        A moça olha para a mesa. Um pedaço de papel rasgado.

 

“Para Olívia.

Amo seus olhos, seu sorriso de criança que acabou de ganhar sorvete e seu abraço quente, confortável.

Amo seus dedos inquietos, seu jeito de sentar na cadeira.

Amo a maneira que você come, sua risada laranja.

Amo ver você dormindo, ou quando acorda descabelada.

Amo suas bochechas cheias de sardas quase invisíveis, aquelas que só eu percebo.

Amo cada pedaço seu.

Amo você por completo.”

 

        O homem chega em casa. A garrafa de vodka estava aberta. A porta da varanda também. Ele vai até o parapeito. Acende um cigarro. O vento seco insistia em apagar a chama. Abril. Era quando se conheceram e, coincidentemente, quando ele terminou essa história.

Gustavo

Rafaela Lima
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