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Timóteo Fontenele

O Jardim

          Amanheceu, assim como incontáveis dias antes desse. E, assim como sempre fora, o jardim fervilhava de alegria e atividade. Logo pela manhã cedo, abelhas produziam mel doce e nutritivo, as formigas trabalhavam duramente, cortavam folhas, transportando–a de um lado a outro. As minhocas trafegavam pelo solo, fertilizando-o. Borboletas esvoaçavam, produzindo e expondo grande beleza, que tocava a alma dos habitantes. As aranhas a tudo vigiavam, mantendo a segurança. Embuás discutiam o futuro dos habitantes do jardim; os grilos saltitavam, mantendo todos informados sobre tudo. De vez em quando, eles paravam ao lado de um embuá, que lhes ordenava que modificassem uma ou outra notícia. A despeito disso e da vida dura que todos tinham, eram felizes.

          O jardim era dividido em quatro setores: o Norte, o Sul, o Leste e o Oeste. Cada um deles possuíam suas próprias peculiaridades em relação ao solo. Então, claro que produziam coisas diferentes. Mas quando algum bichinho queria trocar algo por outra coisa, propriedade de outro bichinho, podia fazê-lo livremente, desde que fosse consensual. Assim, produzindo algumas coisas e pacificamente trocando outras, a maioria tinha o que precisava. Os que nada tinham, nem podiam produzir nada temiam, pois periodicamente os outros lhes davam de comer. Assim os dias transcorriam calmamente no jardim, sem que ninguém precisasse roubar nada nem agredir ninguém.

          Numa certa tarde, uma lacraia saiu das pedras no fundo do jardim. Andando pela viva e verde grama do jardim com seu corpo esguio, viu as formigas trabalhando incansavelmente. Lembrou-se de sua infância, nascido e crescido nesse mesmo setor. Um vento forte sacudiu os arbustos e as árvores, anunciando o princípio da noite. E, com a queda da noite, bichinhos de outros setores vinham trocar seus produtos. Vendo a lacraia ali, o embuá que a sustentava veio correndo a seu encontro. A verdade era que o embuá admirava profundamente as ideias da lacraia, mesmo sem as compreender completamente. Ambos, em silêncio, contemplavam a planície que se estendia adiante deles. Achavam que os outros não eram suficientemente altruístas.

Achavam que alguns animais exploravam os outros. E achavam que cabia a eles mudar tudo isso.

          O jardim era um local interessante. O princípio mais amplamente pregado era a liberdade de seus cidadãos. Todos podiam (e deveriam) fazer o que quisessem, sem, no entanto, ferir os direitos naturais dos outros animaizinhos. Haviam governantes, e o período das eleições estava próximo. A bem da verdade, os candidatos não faziam muita diferença na vida dos habitantes do jardim. Normalmente só se candidatavam embuás, que, além de trabalharem para sustento próprio, pensavam em conjunto para propor maneiras de tornar a convivência mais justa e garantir que os direitos de todos fossem respeitados. Claro, borboletas e formigas, grilos e afins podiam se candidatar, mas pra quê? Preferiam trabalhar com o que gostavam e se especializar nisso. “Deixe que os embuás se ocupem em pensar nisto, nós apenas julgaremos ao final o resultado.” – essa era a opinião geral.

           Astutamente sabendo que muitos se sentiam injustiçados por possuírem menos que outros companheiros, sentimento esse que em pouco ou nada superava a inveja, a lacraia começou a sussurrar para as massas. As formigas, minhocas, embuás, aranhas, grilos, abelhas e borboletas. Não houve ninguém que ficasse a salvo de suas palavras, espalhadas pelo vento aos quatro setores. Aos que tinham mais, tornou-os convictos da culpa, fez-lhes pesar a consciência; aos que tinham menos, fez-lhes a cabeça, afirmando que sofriam injustiça. Que tudo deveria ser de todos. Muitos se convenceram de suas ideias.

          E sua lábia, seu carisma, doces palavras nos quais ainda permeava seu veneno foram quase que universalmente aceitas. Transformados por seus argumentos, a maioria dos animais votou nele. Sobre seus ombros agora pesava a vontade dos animais. E porque suas palavras pareciam fazer sentido, muitos confiaram nele. Contrários à sua natureza, os animais se tornaram dispostos a sacrificar sua liberdade para fazer o que achavam que era certo. Verdade seja dita, nem todos estavam dispostos a aceitar tal regime revolucionário. Um embuá então, assumiu essa luta contra tal governo. Com frequência ele falava aos que passavam por seu setor, o setor Norte. Ele dizia que devemos ajudar aos outros, sim, mas sem sentir-nos culpados por termos, por intermédio de nosso esforço, mais do que os outros: tal sentimento era antinatural e doentio. Pregava que o que você tinha era uma extensão de quem você era, sendo representação de seus gostos e personalidade, e que, portanto, era algo importante e natural. Que nossa vida, liberdade e propriedade eram dons divinos e sagrados que deveriam ser protegidos. Era ilógico confiar tão-somente num animal, que dizia ser a melhor escolha para os outros, sendo que ele era tão falho quanto qualquer outro. Ele era um embuá de fala mansa e humilde, muito gentil, que era amado e querido por todos, sempre praticando o bem.

          No dia seguinte, o corpo do embuá surgiu esmagado no meio da clareira, seu sangue marcando o chão.

          A lacraia proclamou luto de um dia, e, tentando acalmar a todos, afirmando que a morte fora acidental. Os animais, enfurecidos, queriam um bode expiatório que lhes permitisse liberar sua frustração. A lacraia deu a eles: as posses. Possuir coisas despertava a ganância, o egoísmo, a inveja, segundo ela, alguns dos piores instintos dos animais. E portanto, tudo deveria ser confiado a ela – à lacraia, que com um conjunto de outras lacraias, ela decidiria o que era o melhor para todos eles. Porque ela, que nada possuía, deveria ser o exemplo de dedicação despojada altruísta que todos deveriam seguir.

Afinal, não queriam todos ajudar aos mais necessitados?

          Queriam. Não é?

          Rapidamente, uma rotina se estabeleceu. A lacraia, frequentemente presenteando as aranhas, granjeou-lhes o favor. Os quatro setores, antes tão interligados, agora se encontravam separados, hermeticamente fechados: mesmo familiares e amigos que moravam em diferentes setores foram brutalmente separados, sem chance de reencontro. Além disso, quaisquer trocas foram estritamente proibidas: cada setor deveria ser autossuficiente. E como tudo o que se produzia, era imediatamente confiscado e levado às lacraias, que deveriam distribuir igualmente pelos setores. Enfim, sem demandas ou procura, as lacraias não sabiam onde alocar os recursos. Como calcular todos os imprevistos e necessidades, de todos os animais, de todos os setores? Como saber o que produzir, para saciar as necessidades de todos? Mas, apesar disso, produzir era a palavra de ordem, então se produzia; muitas vezes, muitas coisas desnecessárias em grande quantidade, e coisas necessárias em pequena quantidade. Tudo era feito, então, sob o olhar atento e dominador das aranhas. Tais reduções afetavam não somente o costume e tradição, como a própria natureza dos animais; tão acostumados a correrem livres pelo jardim. As borboletas e abelhas que concordavam com a lacraia, com fervor alimentavam os outros animais com seu mel e beleza estonteantes. “Aguentem, ” pareciam dizer. “estamos indo no caminho certo.”

           Mesmo com as mudanças implantadas, de boa vontade todos se sujeitariam, em prol do sonho de criar uma sociedade igualitária. Mas, um tanto incomodados pelo curso de suas histórias, muitos principiaram a se posicionar contra os ideais defendidos pela lacraia: cada um dos animais a seu modo. As borboletas não extraíam mais o néctar das flores, as abelhas não produziam mais mel, as minhocas se recusavam a fertilizar o solo. Sim. “Voltemos aos tempos antigos!”, alguns diziam. “Precisamos mudar nossas ideologias,”, outros diziam. “A lacraia não tem cumprido o que nos mostrou” afirmavam ainda alguns. Sim, sacrificariam suas propriedades e suas liberdades, mas deveriam todos dizer o que sentiam, para um avanço igualitário, onde os desejos e opiniões de todos eram respeitados, certo? E todos esperaram, para ver o que se lhes sucederia. Uma manifestação gigantesca, desobedecendo às determinações impostas, quebraram os limites e se encontraram todos no setor Norte, local onde se localizava o palácio da lacraia. A barreira, imposta pelas aranhas a mando da lacraia, fechou-se num círculo ao redor do palácio, protegendo-o. Assim se passou uma noite e um dia.

Na manhã do segundo dia, a lacraia surgiu à varanda de seu palácio, visivelmente comovida. Falou ao seu povo. Suas palavras mais uma vez trouxeram o frescor de suas promessas à vida novamente. Num gesto altruístico, incentivou-se toda e qualquer crítica contra o governo, com o objetivo de melhorá-lo e corrigir todo e qualquer erro. Seria um período a cada dois anos, após os quais sempre se apuraria e corrigiria os erros apontados.

          Foi um tempo bom. Todos podiam finalmente falar exatamente como pensavam, como queriam. Apesar de não poderem reabrir novamente os setores, a Lacraia abriu os depósitos de recursos que haviam sido guardados durante todo esse tempo. Então, durante esse tempo, a escassez diminuiu. Apesar de que cada vez mais os grilos eram interceptados pelas lacraias, todos estavam felizes. Os embuás que se alinhavam com a Lacraia falavam aos demais, lembrando-os de seu objetivo.

Andando num deserto escaldante, os dirigentes revolucionários pareciam apontar para um oásis: um paraíso social, onde todos seriam iguais. Sem exploração, onde tudo seria de todos.

Após os dois anos, a uma ordem da lacraia, os nomes de todos os revoltosos foram recolhidos, e as aranhas começaram a se movimentar. As abelhas foram trancafiadas. As teias por elas tecidas capturavam as borboletas, as formigas, todas enroladas.

          Em meio as ruas, prisões e assassinatos ocorriam com a permissão governamental. Gritos e lamentos enchiam o ar. As aranhas traíam seus ideais, matando seus amigos e conhecidos, seu próprio povo. As asas das borboletas e abelhas foram arrancadas – elas jamais voltariam a voar.   Suas antenas foram esmagadas, as minhocas cortadas ao meio. Incontáveis formigas morriam. E enquanto o massacre ocorria, as lacraias continuavam sussurrando aos demais animais que a Lacraia não errava. Todo aquele sacrifício era necessário; aliás, não só necessário, como também indispensável.

Elas estavam impedindo o progresso, ainda detinham ideias e posses individualistas: sem pensar no conjunto, em todos. Os grilos começavam a sumir, e nunca mais se ouvia falar deles. Todo o setor Norte foi subdividido em vários espaços menores, onde, num frio constante, todos os que não concordavam com as lacraias eram trancafiadas e submetidas a trabalhos forçados e desumanos.

“Só que,” – proclamou, soberana, a Lacraia “eles são um peso para nós. E, portanto, devem perecer em nossa Revolução!”.

          Logo após isso, apertou–se o cerco em redor dos habitantes do jardim. E a Lacraia começou a tomar todas as crianças de todos os animais. Tirar o direito dos pais de criar as próprias, confiadas à Instituição que as lacraias denominaram de “O Jardim.”

Por todos os setores, ecoava a máxima: “Tudo no jardim, nada contra o jardim, nada fora do jardim.” Tal pensamento era inserido à força nas mentes jovens criadas pelo jardim. Em pouco tempo, ignorando as leis naturais de troca, as reservas começaram a escassear. Os animais começaram a passar fome. As borboletas, abelhas e grilos sumiam aos montes, e cada vez menos ressoavam vozes discordantes das lacraias, até cessarem completamente. Os grilos agora eram diretamente controlados. Não havia notícias que eles passassem ao povo sem a aprovação das lacraias. O mel produzido pelas abelhas era tão diferente do que quando…

          Do que quando?…

          Quando?

          Afinal, desde quando tudo isso havia acontecido? Tantos anos já haviam se passado…

          A grande maioria dos que um dia haviam abdicado de sua liberdade, em nome dos mais necessitados estava morta. Morreram de fome, morreram de desgosto, seus corpos empilhados aos montes em valas comuns. Morreram entregando seus últimos bocados de comida às crianças, morreram suspirando seus últimos suspiros com os olhos nublados vagando em busca do ideal pelo qual foram sacrificados. Todos da antiga geração, um dia feliz e próspera, agora morriam em lugares esquecidos, num céu anteriormente  tão ensolarado, agora escuro e esfumaçado, fumaça espessa das fábricas trabalhando dia e noite.

          E eis que uma nova geração se levanta.

          Uma nova geração que encara a morte como sacrifício, e sim como dever. Um destino inevitável, desprovido de significado, assim como toda aquela existência criada pelas lacraias.

Se o que dantes tinham agora pertencia a todos, eles mesmos pertenciam a todos. Um jardim construído e em “ascensão”, levantado à base de pilhas de corpos, inomináveis, inumeráveis. Os que nasciam tinham seus pensamentos adaptados ao que é, que era e que sempre há de ser: as Lacraias, democraticamente eleitas, em nome do social.

          Quão longe agora ressoava a suave voz do bondoso embuá, que apregoava simplesmente a paz, que dizia que somos o que deveríamos ser, que podíamos escolher o que queríamos ser ter de ferir ninguém.           Pregava a liberdade como um sopro de vento refrescante num dia quente. Mas tudo isto havia acontecido há tanto tempo que se poderia contar nos dedos quem se lembraria de tudo o que houve. Já agora, nada disso havia mais.

          As novas borboletas, formigas, abelhas, minhocas, grilos, embuás ou aranhas que surgissem não entenderiam nada, mesmo se alguém lhes dissesse. As palavras “liberdade” e “propriedade” já não constavam do vocabulário dos animais do jardim. Era como se vendas fossem postas sobre seus olhos. E viviam contentes, satisfeitos em que alguém lhes dissesse o que sentir, como sentir e reagir. Seguiam todos em fila, exatamente iguais uns aos outros.

Longe daquilo tudo, um embuá e uma abelha observavam atentos. E choravam.

Livros proibidos contavam um glorioso passado vivido em liberdade e felicidade. Livros que despertavam um clamor que se lhes surgia da alma, que, não importava o que acontecesse, os mantinha movendo, sempre. E se render, jamais.

          Mesmo assim, naquele momento, sob o céu tempestuoso e escuro, se podia apenas esperar, esperar… e orar para que Deus os livrasse, ninguém sabia quando. Talvez em 10, 100, 1000 anos, quem poderia saber…

          Mas um dia, juravam eles para si, no fundo de seus corações, haveriam de novamente respirar o ar puro da liberdade sob um céu profundamente azul.

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