


MUIRAQUITÃ

OBRAS
Guilherme de Almeida
Nós - I
Fico - deixas-me velho. Moça e bela,
partes. Estes gerânios encarnados,
que na janela vivem debruçados,
vão morrer debruçados na janela.
E o piano, o teu canário tagarela,
a lâmpada, o divã, os cortinados:
- "Que é feito dela?" - indagarão - coitados!
E os amigos dirão: - "Que é feito dela?"
Parte! E se, olhando atrás, da extrema curva
da estrada, vires, esbatida e turva,
tremer a alvura dos cabelos meus;
irás pensando, pelo teu caminho,
que essa pobre cabeça de velhinho
é um lenço branco que te diz adeus!
Nós – II
Nessa tua janela, solitário,
entre as grades douradas da gaiola,
teu amigo de exílio, teu canário
canta, e eu sei que esse canto te consola.
E, lá na rua, o povo tumultuário
ouvindo o canto que daqui se evola
crê que é o nosso romance extraordinário
que naquela canção se desenrola.
Mas, cedo ou tarde, encontrarás, um dia,
calado e frio, na gaiola fria,
o teu canário que cantava tanto.
E eu chorarei. Teu pobre confidente
ensinou-me a chorar tão docemente,
que todo mundo pensará que eu canto.
Nós - III
Mas não passou sem nuvem de tristeza
esse amor que era toda a tua vida,
em que eu tinha a existência resumida
e a viva chama de minha alma, acesa.
Nem lemos sem vislumbre de incerteza
a página do amor, lida e relida,
mas pouquíssimas vezes entendida,
sempre cheia de engano e de surpresa,
Não. Quantas vezes ocultei a minha
dor num sorriso! Quanta vez sentiste
parar, medroso, o coração de gelo!
- É que nossa alma às vezes adivinha
que perder um amor não é tão triste
como pensar que havemos de perdê-lo.
Nós - IV
Quando as folhas caírem nos caminhos,
ao sentimentalismo do sol poente,
nós dois iremos vagarosamente,
de braços dados, como dois velhinhos,
e que dirá de nós toda essa gente,
quando passarmos mudos e juntinhos?
- "Como se amaram esses coitadinhos!
como ela vai, como ele vai contente!"
E por onde eu passar e tu passares,
hão de seguir-nos todos os olhares
e debruçar-se as flores nos barrancos...
E por nós, na tristeza do sol posto,
hão de falar as rugas do meu rosto
hão de falar os teus cabelos brancos.
Messidor
Eu não sei quem tu és. Sonhei-te linda,
amei-te em sonho e vivo neste sonho.
Para encontrar-te, numa dor infinda,
Pus-me a caminho, pálido e tristonho.
Tu não sabes quem sou. Sonhas-me ainda
a alma triste dos versos que componho.
E, suspirando pela minha vinda,
pulsa, em teu peito, o coração risonho.
Sonhamos. Quando, um dia, eu for velhinho,
hei de encontrar-te, velha, no caminho...
E juntos, cambaleando, aos solavancos,
nós levaremos, pela tarde calma,
toda uma primavera dentro da alma,
todo um inverno de cabelos brancos...
Dança das Horas
Frêmito de asas, vibração ligeira
de pés alvos e nus,
que dançam, tontos, como dança a poeira
numa réstia de luz...
São as horas que descem por um fio
de cabelo do sol,
e vivem num contínuo corrupio,
mais obedientes do que o girassol.
Dançando, as doze bailarinas tecem
a vida; e, embora irmãs,
não se vêm, não se dão, não se parecem
as doze tecelãs!
E, de mãos dadas, confundidas quase,
no invisível sabá,
elas são silenciosas como a gaze,
ou farfalhante como o tafetá.
Frágeis: têm a estrutura inconsistente
de teia imaterial,
que uma aranha teceu pacientemente
nos teares de um rosal.
E, entre tules volantes, noite e dia,
o alado torvelim
vertiginosamente rodopia,
numa elasticidade de Arlequim!
Vêm coroadas de rosas, num remoinho
cambiante de ouro em pó:
cada rosa, que esconde o seu espinho,
dura um minuto só.
Sessenta rosas, vivas como brasas,
traz cada uma; e, ao bater
da talagarça diáfana das asas,
põem-se as coroas a resplandecer...
À proporção que gira à minha frente
o bailado fugaz,
cada grinalda, vagarosamente,
aos poucos, se desfaz.
E quando as doze dançarinas, feitas
de plumas, vão recuar,
levam as frontes, claras e perfeitas,
circundadas de espinhos, a sangrar...
Assim, depois que a estranha sarabanda
na sombra se dilui,
penso, vendo o outro bando que ciranda
em torno do que fui,
que há uma alma em cada gesto e em cada passo
das horas que se vão:
pois fica a sombra de seu véu no espaço,
fica o silêncio de seus pés no chão!...